18/10/10

Cem anos sobre a República

Começava então a epopeia dos dias inolvidáveis de Outubro, em que a vitória e o perdão se confundiam num impulso de nobreza patriótica, que desde logo conquistou para a República a simpatia e a admiração da Europa.

José Relvas, Memórias Políticas,
Ed. Terra Livre, 1977, p.148


Neste mês de Outubro, comemoramos cem anos sobre a revolução que nos trouxe a República. Nessa época o Partido Republicano trazia consigo a esperança de renovação de um país exaurido por pelas políticas de “ vistas curtas” das últimas duas décadas da Monarquia.
Não me parece saudável a atitude dos que hoje querem comparar os tempos de crise que vivemos com o alvorecer da nossa I República. Sabemos que os republicanos de há cem tomaram opções radicais: não permitindo o voto a grande parte da população; perseguindo os católicos e a Igreja; exagerando no peso político das câmaras do Congresso e por fim embarcando na trágica aventura da Guerra Mundial. De facto, a República não foi consensual e por duas vezes (em 1911 e em 1919) o país viveu em clima de guerra civil. Hoje, cem anos volvidos, estou em crer que não deveremos embarcar na pura e simples propaganda da República. No entanto, também não será justo querer lembrar apenas a instabilidade política e as suas causas, esquecendo, mais ou menos deliberadamente, as conquistas desse Outubro inolvidável.
A I República trouxe-nos um Estado laico e a liberdade religiosa. Houveram excessos na relação com Igreja é verdade, mas que resultaram de um sentimento histórico de “ ajuste de contas” , o qual não sendo desculpável será, certamente, compreensível. No contexto laboral, ainda que viabilizando o “ lock-out” , o direito à greve foi garantindo pelos republicanos, num cenário sem comparação nos países do sul europeu da época. No campo da família, vieram a ser reconhecidos alguns direitos à mulher, até em então quase desprovida de personalidade jurídica. A legalização do divórcio deve ser entendida como um avanço jurídico extraordinário para altura.
No campo dos direitos civis não terão existido tantos avanços. A censura continuou e voto foi negado às mulheres e aos analfabetos. Pretendendo defender a República, estas medidas cortam a comunicação do novo regime com uma potencial base de apoio, também modesto operariado, como nos assalariados agrícolas do Ribatejo, por exemplo. Se quisermos encontrar a causa principal da instabilidade, assim como da posterior queda da República, a lei eleitoral estará na primeira linha. No entanto, a base eleitoral foi bastante alargada em relação ao voto censitário da Monarquia. Por outro lado, foi consagrado o direito à manifestação e o cidadão disponha de várias formas de fiscalização do poder, como, por exemplo a possibilidade de questionar directamente o Parlamento no final da ordem do dia.
A maior herança da I República foi a escola pública. A existência de um sistema de ensino universal, gratuito e garantido pelo Estado a todos cidadãos era já um ideal máximo dos republicanos. Talvez por isso, hoje, os que querem acabar com escola pública prefiram esquecer o progresso que neste sector nos trouxeram o 5 de Outubro. A República democratizou em larga escala o acesso ao ensino primário. Canalizou os parcos recursos do país para a construção massiva de estabelecimentos de ensino (ultrapassando os três milhares de projectos de escolas iniciados em 16 anos). Organizou as chamadas “ escolas normais” para a formação de um novo professorado, após o afastamento dos clérigos. A República reformou a Universidade de Coimbra, suprimindo o peso da religião no ensino, actualizando os curricula. Neste contexto, criou duas novas Universidades uma em Lisboa outra no Porto, também favoreceu as escolas politécnicas e, ainda, procedeu à reforma do ensino artístico.
Em 1910, contavam-se 75% de analfabetos em Portugal e, em 1926, já somente 67% da população não sabia ler nem escrever – à míngua de recursos humanos e económicos este decréscimo foi uma das vitórias do regime republicano. À luz destes cem anos esse será sempre o maior legado da nossa I República.
Hoje, enquanto republicanos, defender a escola pública, os direitos sociais e lutar por mais igualdade será permanecer fiel ao espírito do hino e da bandeira que simbolizam um Portugal republicano: corajoso no sangue derramado e esperançoso no futuro a construir.


José R. Noras - JS Santarém

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